O uso da Musicoterapia na saúde mental
Publicado por Scio Education

A música é um traço universal da humanidade. Seu poder de cura já foi reconhecido em quase todas as tradições musicais. Nesse contexto, a Musicoterapia tem se transformado de um modelo sócio científico, focado em saúde e bem-estar de um modo geral, para um modelo de neurociência, focado em elementos específicos da música e seus efeitos nas funções sensório-motoras, de linguagem e cognitivas.

Alguns estudos de musicoterapia, baseados em evidências, sobre condições psiquiátricas demonstraram resultados promissores. Músicas tradicionais, como a música clássica Indiana, foram apenas recentemente consideradas como base para pesquisas relacionadas à musicoterapia. Destaca-se então a necessidade de uma pesquisa sistemática nessa área.

O potencial inexplorado da música clássica Indiana.

A música, como linguagem, é um traço onipresente ao longo da história da humanidade.

Como qualquer outra forma de arte, a música sempre foi vista por uma perspectiva estética e seu poder de cura foi documentado em várias tradições de música ao redor do mundo. A música clássica Indiana (MCI) é, talvez, uma das formas mais antigas de música. Ela data das escrituras antigas da Índia, as Vedas (datadas por volta de 5000-2000 AC), e é dita ter se originada de uma das quatro Vedas, a Samaveda. A Vedas consistem de versos em sânscrito para entoação de cânticos. As duas formas presentes de MCI, conhecidas como Música Clássica Indiana do Norte (ou Música Clássica Hindustâni) e a Música Clássica Indiana do Sul (ou Música Clássica Carnatica) saíram da mesma tradição, por volta do século 13. Ragas (da frase sânscrita ranjayiti iti ragaha), que significa ‘aquele que induz emoção na mente’, e taal (um ciclo com uma estrutura rítmica) formam a base da Música Clássica Indiana.

Os ragas provém a estrutura para a elaboração melódica e são definidos como a base melódica para composições e improvisos (Jairazbhoy, 1995). Existem centenas de ragas nessas duas tradições. Cada raga possui notas específicas (swar) para ascender e descender, e uma forma específica em que cada nota é combinada. Algumas notas nos ragas são consideradas cruciais. A nota mais importante é chamada de vadi-swar e a segunda nota mais importante é chamada de samvadi-swar. Cada raga tem uma linha melódica única, como uma assinatura tonal ou tema, um chamado de pakkad. Cada raga é associado com tema emocional específico (rasa ou ras, em sânscrito significa ‘a essência’) Os ragas são conhecidos por evocar um ou mais dessas emoções (tristeza, romance, paz, força/coragem, raiva, devoção, anseio, paixão).

A expressão do aspecto raga-nasa é considerado o objetivo principal da MCI, e essa expressão tem a intenção de variar dinamicamente ao longo da performance. A apresentação do raga na MCI portanto evolui ao longo do tempo, em diversos estágios (alap, jhor-jala, gat, vilambit, dhrut) e dimensões. Variações são introduzidas e não apenas improvisos melódicos, mas também na composição, tempo e complexidade rítmica do ciclo.

Um estudo que investigou as variações nas experiências emocionais durante as diferentes fases da elaboração do raga encontrou que as variações emocionais dentro de certos ragas foram muitas vezes maiores do que entre ragas. Músicos de MCI possuem a habilidade de variar fortemente a expressividade associada a um raga específico em suas performances, mas ainda respeitando a estrutura daquele raga.

Em um estudo envolvendo eletroencefalografia (EEG), 20 indivíduos sem treinamento musical escutaram aos ragas de Música Clássica Indiana do Norte. Eles demonstraram um aumento nas ondas alpha, delta e theta em comparação com uma condição de repouso com olhos fechados. As mudanças observadas durante a escuta de música já haviam sido ligadas anteriormente a estados de relaxamento profundo, como estados meditativos. Escutar certos ragas, como o ‘Desi-todi’ por exemplo, por 30 minutos todos os dias, por 20 dias, demonstraram produzir uma baixa significativa na pressão sanguínea sistólica e diastólica, assim como a redução do estresse, ansiedade e depressão, além de elevar sentimentos satisfatório, experiências de esperança e otimismo. Essas mudanças na frequência cardíaca mostraram-se muito mais evidentes em mulheres do que em homens. Considera-se que os ragas possuem poderes de cura e a habilidade de melhorar a saúde de maneira geral.

A Musicoterapia e sua jornada de uma perspectiva social para uma neurociência

A utilização de música como forma de terapia data desde os tempos pré-históricos. Essa prática tem sido predominantemente impulsionada pelo modelo recreacional e sócio científico, focando no bem-estar e na saúde emocional. A Federação Mundial de Música definiu a musicoterapia como o seguinte:

“O uso de música e seus elementos por um musicoterapeuta qualificado em um cliente ou grupo, através de um processo desenvolvido para facilitar e promover a comunicação, relacionamentos, aprendizado, mobilização, expressão, organização e outros objetivos terapêuticos relevantes, em ordem de atender necessidades sociais, cognitivas, emocionais e físicas. Musicoterapia procura desenvolver os potenciais e/ou restaurar as funções de um indivíduo para que ele/ela possa alcançar uma melhor integração intra ou interpessoal e, consequentemente, uma melhor qualidade de vida via prevenção, reabilitação ou tratamento.”

Ao longo das três décadas passadas, a música tem sido estudada como um fenômeno cognitivo. A música é vista como um conjunto complexo de diferentes processos e características, tais como afinação, intervalo de afinação, andamento, ritmo, contorno melódico e contorno rítmico. Algumas evidências científicas referentes a várias condições clínicas e a indivíduos treinados e não treinados musicalmente foram produzidas. Esse campo de pesquisa surgiu como uma derivação especializada da neurociência cognitiva e psicologia, e foi inúmeras vezes referenciada como neuromusicologia, cognição musical ou psicologia musical. Avanços na pesquisa de métodos, ferramentas e técnicas, como a Imagem por ressonância magnética funcional (fMRI), Potenciais de eventos relacionados (ERP), Estimulação magnética transcraniana (EMT) e a Magnetoencefalografia (MEG), já contribuem para um aumento exponencial neste campo. A melhora no entendimento das correlações neurais da música também auxiliou significativamente no entendimento e funcionamento do cérebro humano e facilitou uma mudança de paradigma no campo da musicoterapia. A música é considerada como um fenômeno biológico e não apenas um fenômeno sociocultural. Esse fato acarretou na mudança de uma ciência social e de modelos interpretativos para uma musicoterapia baseada na neurociência, estendendo-se a múltiplos domínios de funcionamento (Hedge, 2014).

Musicoterapia: um método adequado para tratamentos em condições psiquiátricas

Pesquisas na música e seus efeitos nas funcionalidades do cérebro tem produzido descobertas na natureza do cérebro, especialmente no fenômeno da ‘plasticidade neural’.

Músicos altamente treinados são considerados como a população ideal para os estudos de plasticidade neural. Performances musicais envolvem uma série de funcionalidades cognitivas, incluindo processamento de informação, atenção, linguagem, funções de memória e execução.

O envolvimento com música é conhecido por trazer benefícios cognitivos, emocionais, fisiológicos assim como bem-estar social e individual (Zatorre, 2005). Um estudo recente reportou que um músico profissional com uma longa história de epilepsia refratária não exibiu nenhum déficit cognitivo nem perda de habilidade musical antes ou depois da lobotomia temporal. Os autores sugerem que tal preservação das capacidades cognitivas e musicais se deu por uma reserva cognitiva, alcançada por meio de um longo período de treinamento musical (Hedge et al, 2016. Em um estudo envolvendo pacientes com Doença de Parkinson, uma forte correlação foi encontrada entre funções cognitivas e performance de diversos componentes temporais de ritmo, como tempo, discriminação e percepção de batidas em uma contexto musical (Biswas et al, 2016).

A música é um grande indutor de emoções, mas também facilita a regulação dessas emoções. Ela ativa a rede cortical associada à emoção, incluindo o sistema frontal, o qual está envolvido no processamento de emoção. A música é conhecida por estimular áreas de cérebro como a área mesolímbica e o núcleo accumbens (NAc), o centro de recompensa do cérebro, que também é conhecido por estar envolvido com as experiências emocionais da vida real. A música altera os parâmetros psicofisiológicos como a percepção de dor, relaxamento, pressão sanguínea e frequências respiratória e cardíaca.

  • Algumas mudanças neuroquímicas causadas pela música podem ser observadas em quatro domínios diferentes:
  • recompensa, motivação e prazer, mediados pela dopamina e opioides
  • estresse e excitação, mediadas pelo cortisol, hormônio liberador de corticotrofina (CRH) e hormônio adrenocorticotrófico (ACTH)
  • imunidade, mediada pela serotonina e pelos derivados peptídicos da pró-opiomelanocortina, hormônio estimulantes de alfa-melanócitos e beta-endorfina
  • associação social, mediada pela ocitocina

A música, por tanto, é uma intervenção adequada para lidar com múltiplos domínios, como o cognitivo, emocional, domínios de funcionamento social, os quais são prejudicialmente afetados em condições psiquiátricas.

Recentemente, foram conduzidos estudos sistemáticos e controlados sobre a musicoterapia em condições psiquiátricas. As análises da Colaboração Cochrane sobre seu uso em pacientes com depressão e pessoas com esquizofrenia reportam que a intervenção melhora o temperamento e tem como alvo a psicopatologia. Essas análises também relatam que pacientes aceitam e participam de musicoterapia; as taxas de desistência são baixas, o que sugere que a música possuir a capacidade de sustentar o interesse dos pacientes. Déficits em métrica, emoção musical, contorno rítmico e memória musical casual foram recentemente observadas em pacientes com esquizofrenia. Percepção de melodia e ritmo, e memória musical, são conhecidos por prever memória de trabalho verbal, memória verbal e reconhecimento de emoções faciais em pacientes com esquizofrenia. Ouvir música também demonstrou trazer efeitos benéficos na melhora do humor e de certas funções cognitivas em condições clínicas como depressão, AVC e demência. Embora a tristeza real seja evitada, a música triste é geralmente ouvida com muita atenção. Em um seminário, foi relatado que ouvir a músicas tristes levam a 4 tipos diferentes de recompensa, relacionados à imaginação, regulação emocional, empatia e falta de implicações da “vida real” (Taruffi & Koelsch, 2014).

Conclusão e direções futuras

O presente artigo apenas oferece uma visão panorâmica de um assunto vasto, que tem crescido exponencialmente nos últimos tempos e irá continuar crescendo. Treinamento musical e musicoterapia baseadas em evidências melhoram as funções sensório-motores, de linguagem e cognitivas em domínios não-musicais. Até agora, a tradição da música clássica ocidental tem sido cientificamente examinada em uma extensão muito maior do que qualquer música de outra tradição. As descobertas são generalizáveis considerando-se que diferentes formas de música de várias culturas têm certas características em comum. No entanto, as músicas tradicionais de várias culturas devem ser sistematicamente estudadas para determinar seus valores únicos, isso se houver, em um cenário terapêutico. As investigações científicas dos inúmeros ragas da Música Clássica Indiana ainda estão no começo. Estudos sistemáticos sobre diversas condições psiquiátricas são imperativos.

 


Conteúdo originalmente adaptado do artigo Music therapy for mental disorder and mental health: the untapped potential of Indian classical music” – Shantala Hedge